segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Marina Lima




Seu mundo é ela quem faz

Por Adriana Abujamra | Para o Valor, de São Paulo


Lula
Marina Lima tinha 22 anos quando fez sua estreia no palco. Empunhou sua guitarra branca, ajeitou o cabelo cacheado que usava na época e se posicionou na boca de cena. No palco Zezé Motta brilhava com o corpo besuntado de óleo de dendê e purpurina dourada. Lá pelas tantas, seu vestido caiu e ela cantou "Crioula" com os seios à mostra, levando a plateia ao delírio com seu vozeirão de contralto.
Quando Zezé anunciou Marina, a convidada especial da noite, os holofotes apagaram-se, fez-se breu. Marina permaneceu estática por cinco minutos nos bastidores, sem saber se o apagão era produto de sua imaginação. Ela só se convenceu que o blecaute era real quando apareceu um segurança com um isqueiro na mão para levá-la de volta ao camarim. A luz logo voltou e Marina enfim subiu ao palco.
Três décadas e quase duas dezenas de discos depois, os holofotes ainda apontam para Marina Lima. Uma das personalidades mais influentes no pop nos anos 80 e 90 resiste, mesmo depois de uma depressão que a levou a se afastar do palco por alguns anos. Hoje, a cantora está em turnê pelo país para apresentar seu novo CD, "Clímax". Suas canções antigas continuam tocando no rádio. Basta passar em frente do Hotel Marina, no Leblon, para que muita gente cantarole: "O Hotel Marina quando acende/ Não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor".
Seu cancioneiro faz parte da formação musical de muitas cantoras da nova geração. Doze delas, como Tulipa Ruiz, grande promessa da MPB, acabam de homenageá-la. Elas emprestam a voz para canções menos conhecidas da compositora, compiladas no CD tributo: "Literalmente Loucas - A Música de Marina Lima", lançado em agosto pela gravadora Joia Moderna.Além disso, a cantora e compositora prepara seu primeiro livro, "Marina entre as Coisas", que será lançado pela editora Língua Geral.
Alex Carvalho/TV GloboEm julho, com Seu Jorge, no “Programa Som Brasil” em sua homenagem: após ter virado “gente grande”, novos parceiros
Às 20h30 de uma terça-feira gelada, Marina Lima chega ao Lorena 1989, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Veste um casaco preto de couro, calça da mesma cor e um sapato de salto alto, altíssimo. Atravessa o restaurante enquanto uma série de cabeças se viram, disfarçadamente, para espiá-la.
Sentamo-nos em sua mesa cativa, bem no fundo do salão, próxima a uma parede repleta de velas derretidas. Marina avista o fotógrafo e vai logo avisando que não fica à vontade posando para a câmera. Consente em brincar de modelo, mas antes pede nossa opinião. "Melhor com ou sem o casaco? Com? Está bom assim?" Depois de alguns cliques decreta: "Já deu, né?" No meio do jantar, mais tranquila com as fotos, confidencia: "Sou tímida, sabia? Palco pra mim foi difícil, bem difícil. Com o tempo me acostumei".
Quando faz show, Marina prefere não saber quem está na plateia. Manda e-mail aos amigos instruindo para que não seja informada sobre a data em que estarão por lá e dá ordens explícitas a seu staff para que façam o mesmo. "Não gosto de saber, acabo me desconcentrando."
A cantora completou 56 anos em setembro, mas aparenta muito menos. Enquanto estuda a carta de vinhos, uma tatuagem de flor rodeando um de seus dedos, feito um anel, se evidencia. Ela conta que tem outras seis "Mas essa foi a que mais doeu, porque foi no osso." A primeira tatuagem foi feita nas costas, em 1984, quando estourou com o álbum "Fullgás". É um cometa com estrelas em volta. "Era assim que eu me sentia, uma estrela com rabo", conta, rindo, e acrescenta que a seguinte seria com uma palavra da cabala, mas desistiu da ideia. Os ensinamentos filosóficos que segue defendem que a marca da cabala deve ser na alma, não no corpo.
Homero Sérgio/FolhapressCom Cazuza em entrega do Prêmio Sharp (1988)
Nos copos, vinho tinto Tilia Malbec Syrah, que se levantam num brinde. Depois do primeiro gole, o tema é seu novo CD, que consumiu dois anos e meio de trabalho antes que a compositora entrasse no estúdio para gravar. "Meu processo de criação é bem lento, de depuração. Começo com ideias musicais que passam por muitos testes, até eu me convencer de que tem fundamento e não é uma repetição. Desconfio da espontaneidade, de música que vem muito fácil. Sou perfeccionista."
Dá um gole e sugere: "Vamos pedir?" Marina e o fotógrafo Cláudio Belli vão de risoto de lula feito com arroz integral. Leandro Nomura - o assessor de imprensa - pede "linguini" com frutos do mar e a repórter, atum com purê de mandioquinha e molho de gengibre. Como entrada, dividimos uma porção de bruschetta de uva com queijo de cabra, sugestão da convidada, que é frequentadora assídua do lugar.
Enquanto aguardamos o pedido, Marina relata, com sua voz rouca, que era a única menina e a caçula de mais dois irmãos, mas jura que nunca foi mimada por causa disso. "Eu era muito independente, não era do tipo de menina frágil. Gostava de esportes radicais, de andar de trenó e surfar. Era 'Tom boy', assim, sabe?"
O pai, Ewaldo Lima, foi convidado a trabalhar no Banco Interamericano de Desenvolvimento,o BID, nos Estados Unidos. Aos cinco anos, a menina que achava que o mundo era do tamanho de Ipanema caiu em Washington, em pleno inverno, sem falar uma palavra de inglês. Era a única estrangeira em uma classe repleta de crianças loiras e ruivas. "Eu era vista como um ser de outro planeta."
Toda manhã tinham que fazer juramento à bandeira americana, em pé e com a mão sobre o peito. "Era um país muito patriota, que só conhecia o próprio umbigo. E extremamente racista. Era muito difícil. A sorte é que eu adorava estudar." Para ajudar a filha a lidar com o banzo, seus pais lhe presentearam com um violão. Ela passou a ter aulas com uma professora chilena, depois teve formação em música clássica e tirava de ouvido as canções brasileiras.
Eduardo Knapp/FolhapressEm desfile de Mário Queiroz, no Phytoervas Fashion (1997)
Quando a bossa nova estourou por lá, nos anos 1960, Marina teve muito orgulho de sua nacionalidade. "Até então ninguém sabia onde era o nosso país. De repente minha vizinha estava estudando música e dança brasileira."
Seus pais gostavam de receber amigos em casa e havia sempre muita cantoria por lá. Na vitrola a mãe pátria pulsava em LPs de Elizeth Cardoso, João Gilberto e Tom Jobim, e também Beatles e música negra. "Fui uma espécie de liquidificador de um monte de ritmos diferentes."
Do pai Marina herdou o pragmatismo. Ewaldo foi um intelectual que ensinou à prole a importância do estudo e da ética. A mãe era uma mulher muito vaidosa e elegante e exímia dona de casa. Recebia e cozinhava com primor. Como quem sente o cheiro do tempero de dona Amélia, serve-se da entrada e nos aconselha a provar. "Hum, isto aqui é uma delícia."
O legado da mãe, além da impressionante semelhança física, é a elegância e o gosto por fazer arranjos. E cozinhar? Necas de pitibiriba. Pudera, dona Amélia não revelava seus segredos nem sob tortura. A danada era capaz de ensinar uma receita completamente errada só para evitar concorrência. "Enganava todo mundo, mas sempre com muita classe."
Se dependesse de Ewaldo, os Lima ficariam nos Estados Unidos para todo o sempre. Mas o homem acatou o pedido do restante da família, que depois de sete anos não suportava mais a vida do lado de lá do Equador. Pegaram um barco rumo à terra natal e qual não foi a surpresa ao descobrir que Tom Jobim era um dos passageiros. A nau atracou no saudoso Brasil com o compositor de "Chega de Saudade" ao lado, feito final feliz de filme com fundo musical e tudo.
Mas o retorno, embora almejado, não foi tão fácil assim. Se nos Estados Unidos Marina se sentia feito um vira-lata, aqui continuava com a sensação de ser estrangeira. O país vivia o ápice da ditadura militar, Caetano Veloso e Gilberto Gil partiam para o exílio político, havia muita perseguição e passeatas. Antônio Cícero, um de seus irmãos que é compositor, poeta e futuro parceiro musical, foi estudar filosofia, e isso bastou para que fosse considerado "subversivo". Com receio de que o filho sofresse represália da polícia, o pai o mandou para Londres.
Arquivo pessoalBrincando na neve em Washington, nos anos 60: de início, ela foi estudar para ser maestrina, mas o professor a convenceu de que seu caminho era compor e cantar
Quanto a seu Ewaldo, não houve cristo que fizesse o piauense acostumar-se em solo pátrio novamente. Depois de cinco anos, decidiu voltar para Washington com Amélia. Marina ficou alguns meses no Rio na casa de parentes e logo foi ao encontro dos pais, decidida a estudar nos Estados Unidos para ser maestrina. O professor, perspicaz, percebeu que o caminho da menina era outro e a convenceu a deixar a batuta de lado e seguir sua sina, que era compor e cantar.
Cícero saiu de Londres e juntou-se ao clã. Um dia Marina encontrou uns papéis amassados no chão e, enxerida, espiou o que estava escrito antes de arremessá-los ao lixo. Era um soneto do irmão. "Às vezes pressinto/ que não me enquadro na lei/ minto sobre o que sinto/ esqueço tudo que sei." Marina decidiu musicá-lo e fez uma surpresa para o irmão. "Alma Caiada" foi a primeira canção que fizeram juntos, inaugurando o que seria uma longa parceria.
O burburinho no restaurante é alto e Marina tem que forçar a voz para falar. Pede mais uma garrafa de água. "Água, gengibre e inalação com vapor são ótimos para a voz", explica e prossegue. Os irmãos gravaram uma fita "com um vasto repertório de quatro canções" e enviaram para o Brasil, aos cuidados de uma tia que trabalhava na área. Maria Bethânia encantou-se e gravou "Alma Caiada", só que a música acabou censurada.
Foi em 1980, cantando "Nosso Estranho Amor", de Caetano Veloso, que Marina estouraria nas rádios e sua voz ficaria conhecida pelo Brasil afora. Mas antes disso, em 1977, emplacou a canção de sua autoria "Meu Doce Amor", gravada por Gal Costa, de quem era "fãzassa".
"... E se acontece uma paixão/ Como aconteceu..." A baiana entoou a música com tal cadência que acabou por arrebatar o coração da compositora. "A Gal foi a primeira mulher por quem me apaixonei na vida."
E como foi a reação de seu Ewaldo e dona Amélia quando souberam do romance? "Bacana, eles nunca se meteram na sexualidade dos filhos. A preocupação dos dois era se teríamos caráter." Dá mais um gole de vinho e lamenta que muitos pais agem de maneira oposta, vigiam a sexualidade da prole, mas não estão nem aí se o rebento rouba ou age de má-fé. "Uma preocupação apenas moralista, entende? Isso é horrível."
Claudio Belli/Valor/Claudio Belli/ValorNo Lorena 1989, em São Paulo, cantora fala do livro que prepara, "Marina entre as Coisas"
Seu prato parece suculento. "Delícia!" Toca seu telefone. Ela atende, fala rápido e conta que era Vanda Jacinto, sua estilista que mora ali do lado e dará uma passada para dizer oi.
Marina sempre compôs com o irmão Cícero, mas em seu último CD buscou novas parcerias. Em "Clímax" Marina quis dar voos solo e falar de assuntos que lhe são caros neste momento, não necessariamente os mesmos temas que mobilizam Cícero.
A cantora salienta que criar com o irmão desde o início foi um exercício excelente. Cícero sabia mais sobre música e ela sobre métrica. Já nos anos 90 a parceria, embora ainda forte, começou a dar espaço para outras colaborações. Foi nessa época que a cantora mudou seu nome artístico para Marina Lima - até então era apenas Marina. A razão não foi a numerologia, tampouco superstição. "Foi porque virei gente grande", diz, com um sorriso. Antes disso Cícero, dez anos mais velho, estava com a caçula em tudo.
No último ano os dois vinham se encontrando muito para resolver assuntos práticos de família e não para compor. Seu Ewaldo já havia morrido fazia algum tempo; depois foi a vez de Roberto, o irmão, que morreu aos 53 anos de um ataque do coração; e por fim dona Amélia, que se foi no ano passado.
Morar em São Paulo era um plano antigo da carioca, que só foi levado a cabo há um ano, logo depois da morte da mãe. Amélia ficara arrasada depois que o filho morreu e Marina não queria abandoná-la numa hora daquelas. Mas, assim que ela se foi, a carioca mudou-se para a capital paulista.
"Só restou eu e Cícero. Mas sabe uma coisa? A memória que tenho dessas pessoas em volta me protegendo faz com que eu me sinta aquecida e protegida sempre. Cresci, mas tenho isso como alicerce para o resto da minha vida, é muito forte."
Claudio Belli/ValorMarina: sensação “de ser sempre estrangeira”
Quando o pai morreu, seguiu-se um período árduo na vida de Marina, que entrou em depressão e ficou seis anos sem fazer show. "Quando você perde pai ou mãe, muda completamente a configuração e funcionamento da família. Fui obrigada a encontrar de novo o meu lugar. Larguei tudo para me reencontrar e dizer, ah, agora estou me entendendo e me reconhecendo novamente."
"Tive histórias tristes/ eu só bem sei/ Mas que o tempo fez transformar" diz um trecho de uma das músicas do novo CD. Mas naquela época Marina não queria compor, tampouco cantar ou o que quer que seja. Separou-se da mulher com quem vivia, mudou de casa, de gravadora e perdeu a voz. Estava decidida a dar um tempo de tudo e de todos.
Desde o início da carreira, a "Playboy" acenava com propostas tentadoras para que Marina posasse nua. Ela achava graça e dava de ombros. Mas o pessoal era insistente. Com a autoestima no pé, Marina frequentava o consultório de um psicanalista que a aconselhou a considerar a proposta da revista. Espirituoso, disse que ela poderia justificar a decisão com o argumento de que tiraria a roupa por prescrição médica. O doutor insistia que Marina era uma mulher talentosa, linda e cantava bem. Tinha que dar uma trégua na autocrítica severa. Marina seguiu o conselho à risca e topou posar nua. "Tinha 44 anos e foi ótimo. Senti que estava conectada com o presente, muito viva e pulsando."
Dá a última garfada em seu risoto e lembra-se, rindo, de que foi muito paquerada por causa das fotos. Um dia estava no aeroporto e cruzou com um grupo de executivos, sérios, engravatados e de malinhas nas mãos. Assim que Marina passou, o grupo virou a cabeça para esquadrinhar sua figura, numa sincronia digna de balé. "Passei a existir para essa gente, o grupo de homens que lê a 'Playboy'."
O barulho das pessoas falando, de talheres e música ambiente está nas alturas. Marina pega balas de hortelã na bolsa e as deixa sobre a mesa, servindo-se delas sempre que sua garganta tem que competir com o burburinho do lugar. Conta que outro dia foi fazer um show no interior de Pernambuco e uma moça bem na frente da plateia carregava a "Playboy" aberta, com os braços para cima como se a revista fosse uma bandeira de time de futebol. Marina trocava de música e a menina se mantinha firme, brandindo a revista.
Chega Vanda, estilista de Marina. "Senta aqui um minutinho", a cantora convida, já preparando um lugar para a moça, que se ajeita numa cadeira avisando que ficará pouco: "Menina, deixei um peixe cozinhando no forno." O garçom traz uma taça de vinho branco para ela e retira os pratos vazios.
Dispensamos a sobremesa e pedimos mais água. Marina revela que consultou a estilista para saber com que roupa viria para esta entrevista. Ao que Vanda rebate: "Mas ela não vestiu nada do que eu mandei". Marina sai em defesa própria. "Como não? Só a camiseta eu escolhi, o resto segui suas ordens." Vira-se para mim e completa: "Eu confio e ouço muito a opinião dela. Com Vanda ouso sem ficar parecendo uma instalação".
Outro dia escolheu uma roupa bem discreta para fazer um show, ao que a estilista subiu nas tamancas, que ideia, deixe para ficar discreta no seu velório, roupa para show é diferente. Marina, que aprendeu a se cuidar observando dona Amélia maquiar-se e ajeitar as madeixas, diz que é extremamente vaidosa. Malha muito, desde os 20 anos, nunca fumou e não usa drogas. "Há uma pressão full time pela aparência. Eu me cuido, mas tomo cuidado para a vaidade não tomar conta. Tenho uma certa culpa por isso. Nunca escondi a idade e sinto que tenho todos os meus 56 anos."
Vanda termina de tomar seu vinho e se despede: "Nossa, o peixe deve estar queimando lá em casa".
Marina diz que está solteira no momento. "Numa época pensei em ter filhos com o Gringo Cardia, um cara que amei, fui muito ligada. Mas achei que não ia dar certo, aí tive cachorros." Vive num apartamento em Higienópolis na companhia de dois cães. "Hoje em dia, a única pessoa com quem eu me casaria é o Candé [Candé Salles, produtor de elenco e diretor] e ele sabe disso."
A cantora está caída de amores mesmo é por São Paulo. Elenca suas qualidades de tal maneira que um paulista demoraria a reconhecer que a cidade que ela descreve é a mesma onde vive. Ir à Pinacoteca de metrô foi uma de suas aventuras pela capital paulista. que espia, encantada, com olhar de estrangeira.
Nos seus shows Marina tem cantando, além das novas composições de sua autoria, a música "Creep", do Radiohead. "Meio dizendo que meu lado não adequado ainda é muito importante pra mim. Essa sensação de ser sempre estrangeira."
Falta pouco para a meia-noite, terminamos de tomar um chá e pedimos a conta. Aguardamos na calçada e logo aparece o manobrista com seu carro. Leandro, seu assessor, entrega um segredo antes que Marina feche a porta do automóvel. "Sabia que ela acha que dirige bem melhor que nós, os paulistas?" A carioca ri, despede-se e desaparece pelas ruas da cidade.

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